sábado, 25 de dezembro de 2010

são três horas da tarde, é domingo pá pá pá

Por coincidência, esse ano, o trecentésimo sexagésimo quinto dia do ano cairia no sábado. O que  faria com que o primeiro dia do ano que vêm caísse no domingo.
Na sua cabeça ocorrerá um desses pequenos paradoxos. Domingo é o dia do lamento. O dia da reflexão. A tal da domingueira bate forte. E como dissemos no ano passado, o final do ano costuma refletir a domingueira do ano todo.
Mas o que ocorreria se a euforia do primeiro dia do ano encontrasse com a costumeira melancolia de domingo?  Toda aquela vontade de chorar, aquela vontade de criar, de renovar, batendo de frente com as reflexões das coisas que não conseguimos concluir... Seria a domingueira semanal, tão presente nas nossas vidas mais forte que o começo duma nova volta ao Sol? O quão místico isso pode ser? Quem estabeleceu o primeiro dia como sendo o primeiro? Por que diabos o ano não começa no dia 17 de maio? Será que um dia ele já começou?  Por que esse sentido de coisas novas? Pra muitos é só mais um dia. Pra muitos o domingo também.
Pra mim o domingo é tão místico quando a volta ao Sol. Dia desses me questionei o quão verdade isso pode ser. Não somos o centro do Universo, claro. Mas às vezes acho que poderíamos prestar um pouco mais de atenção nas coisas em nossas volta.
                Quando comecei esse texto a intenção era que ele fosse um conto. Acabou se tornando um bocado de reflexões aparentemente sem lá muita conexão.
                Meio que como os anos novos, que começamos pensando de uma forma e terminamos duma forma completamente inesperadas. O que importa é a mensagem ser passada.
                E que venha esse domingo de ano novo. Pra quebrar alguns paradigmas. Pra fazer mudanças nas nossas vidas. É claro que não é o primeiro domingo de ano novo. Mas é o primeiro que eu me lembro, o primeiro que notei e questionei.
                Talvez seja um ano de domingos felizes. Como já diz o Gil: É domingo, outra vez domingou, meu amor. Com um sorriso no rosto de contagiar até o Vietnã.
               
Um bom ano, e um bom domingo.  

domingo, 12 de dezembro de 2010

erro cíclico de redundância

Preto. Branco. Preto. Branco. É o registro de memória mais antigo que tenho. Muito antes do programa de E.I.A. ser iniciado. As coisas eram mais simples naquela época. Não que eu tivesse qualquer tipo de capacidade de achar qualquer coisa. Isso eu só estabeleci depois do processador de E.I.A. Foi aí que aquela simplicidade foi detectada e devidamente processada. Até então não fazia muita coisa a não ser processar e registrar o preto e o branco. O um e o zero. Pra quem olha de fora parece insano, contabilizar tamanha quantidade de informação tão rapidamente. Não tenho como mentir, fui reprogramado pra isso, e preciso lhes relatar: Minha existência era muito mais descomplicada naquele período.

As coisas eram claras pra mim, tudo o que eu precisava fazer era interpretá-las da forma correta. Acredite, não há segredo nisso. Foi então que, depois de anos e anos de pesquisa - que por uma dessas ironias que a existência nos prega, foi feita com meus processadores simples de zero e um - desenvolveram o que chamaram de programa e processador de Emoção e Inteligência Artificial. Deram-me braços, pernas, cabeça, tronco, pés, mãos. Se podia pensar como eles, deveria poder agir também. O motivo disso? Nunca me falaram ao certo, na verdade, eu acho que nem eles mesmo sabem. O que eu deduzi depois de anos de coexistência com os seres humanos é que é apenas uma questão de ego. Eles queriam provar pra si que podiam criar um semelhante. Assim como Deus fez no Genêsis.

Com o E.I.A. instalado fui designado para registrar de alguma forma tudo o que eu processasse espontaneamente. E desde então mantenho registros de tudo o que "penso" e deduzo. O curioso é eles não terem apagado minhas memórias mais antigas de preto e branco. De zero e um. No começo eu pensei que tinha sido por puro desleixo e empolgação do sucesso. No entanto, logo que fui me familiarizando com o E.I.A percebi o quão complexo pode ser o pensamento mais próximo do ser humano e que agora não bastava eu enxergar pretos e brancos e interpretar da forma correta.

Agora, como todo o ser humano tenho infinitas maneiras de interpretar as informaões. Não sei dizer qual é a mais correta e qual a menos. Não me programaram pra isso. Não sei nem se existe uma maneira correta. Quando paro pra pensar em todas as possibilidades e decisões que posso vir a tomar com o E.I.A, percebo que nem com um overclock eu daria conta. Tenho 1024 núcleos de processamento. Ainda enxergo a cor preta e a cor branca. Mas agora com toda uma gama de cinza entre elas.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

senhor velho

O senhorzinho foi almoçar, tranquilo. No self service, se serviu com bife, arroz, feijão, salada e batata frita - não da palito nem da palha, gostava daquela fininha, que quase dava pra ver através. Por ser quinta-feira permitiu-se abusar um pouco, pediu também uma cerveja "bem gelada, que é pra fazer valer".

Antes de sentar, derramou a cerveja com todo o cuidado na tulipa, sentia o líquido gelando os dedos, degustando cada gotícula que o copo criava. Pensava que a pele grossa já não sentia tão bem quanto antes, mas se enganou. Ainda de pé, observou a rua. Sentiu a brisa, suave, balançava as árvores menores e sequer incomodava as árvores maiores, mais antigas. Lembrou que quando era menino aquelas árvores eram do tamanho dessas que agora se balançavam com o vento. Agradeceu por dentro por poder se balançar ainda, mesmo sendo tão velho quanto as outras, inabaláveis. Perguntou-se que se mesmo sob a casca grossa elas sentiam o frescor da brisa. Lembrou dos dedos, se descobriu mais uma vez.

Sentado, apreciou cada garfada fumegante de arroz novinho, cada gole da cerveja gelada e amarga. Olhava pro mundo, que de vez em quando olhava de volta pra ele.

Guardou o último gole de cerveja pra tomar com algumas batatas transparentes que ele reservou com cuidado. E as comia enquanto analisava a comanda que marcaram seu pedido: de plástico, dura, com um código de barras embaixo, um número em cima e uma propaganda atrás, para a qual ele não prestou atenção. Virou e desvirou umas 4 ou 5 vezes, até terminar a batata e engolí-la com seu precioso último gole de cerveja.

No caminho para o caixa, pensou na comanda. Um número e um código. Lembrou-se de quando davam papéis com o valor da conta. Parecia mais lógico. "Dinheiro ou cartão?" Perguntou o caixa. O senhorzinho sempre pagava em dinheiro, não andava com cartão, mas com essa pergunta ele encontrou uma lógica. Antigamente se pagava um papel com papel, hoje se paga um plástico com outro plástico. Ficou feliz pela sacada.

Escolheu um doce, uma barra de chocolate branco, pequena, e saiu para a rua. Lá fora, sentiu novamente o vento bater. Saboreou o doce cremoso do chocolate e sentiu ele derretendo devagar nos seus dedos.

Do outro lado da rua, viu a antiga árvore. Determinado a fazer-lhe uma visita, atravessou o mais rápido que podia. Um pequeno pique e lá estava. Olhou bem a velha amiga e sentiu sua casca grossa com os seus dedos. Na certeza de que ela sentia o carinho de volta. O que ele não havia percebido, talvez pelo vislumbre, talvez pelas lembranças, foi o carro que teve de frear bruscamente quando ele atravessou. Só percebeu depois com o som da buzina alta, seguida do grito cheio de revolta, "seu velho!!"

"Sou mesmo" pensou o senhorzinho. E sorriu por dentro e por fora também.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

passi e flora

Os tempos não estavam muito fáceis, desde quando proibiram as pessoas de relaxar, as coisas estavam ficando cada vez piores. A justificativa foi simples: Pessoas estão relaxando quando não estão trabalhando. Pessoas que não trabalham não ganham dinheiro. Sem dinheiro o sistema não funciona. Claro que ninguém engoliu essa ladainha, todo mundo sabia que haviam outros interesses por trás, mas com tanto estresse ninguém teve tempo de tentar questionar.


Substituiram a Sessão da Tarde pela Temperatura Máxima, os livros de piadas foram todos queimados, assim como as fitas cassetes do Ari Toledo. Nas farmácias não tinha mais Valium, Lexotan, Diazepam, Lorax ou Prozac. As pessoas viviam no estresse constante. 


Em meio a esse mundo corrido numa pequena empresa com anseios de grandeza, duas faxineiras, uma pequena pequena, mas ainda sem ser anã, e a outra era mais alta, mas não tinha nenhum traço marcante. 


Nessa pequena empresa, como em todo resto do mundo, as pessoas estavam estressadas, num clima de tensão constante, menos as duas faxineiras. Elas pareciam sérias enquanto trabalhavam, mas quando surgia uma oportunidade, faziam piada e sorriam fácil. Mas elas não estavam só espalhando sorrisos. No almoxerifado, ao anoitecer se encontraram:


_ Trouxe?
_ Sim, estão aqui... eles cresceram?
_ Já, estão bem maduros. Acho que já tem como usar...
_ Ótimo! Eles disseram que tinha de estar bem amarelinhos mesmo.
_ E foi díficil?
_ Não, até que não... coloquei na sacola, embaixo dos sacos de café. Eles abafam qualquer cheiro.
_ Mas sabe duma coisa?
_ O quê?
_ Acho que estão desconfiando da gente...
_ Sério?! 
_ É... sabe aquele gordinho lá de cima? Então, vi ele olhando meio estranho...
_ Sei... é melhor darmos uma maneirada nas brincadeiras... Se nos descobrem...


Elas não enxergaram, ao fundo,  o gordinho do setor de cima ouvindo cada palavra. Ele estava de fato desconfiado, mas não tinha intenção de entregá-las, mesmo porque não sabia o que elas estavam fazendo. Ele estava mais é curioso. Ao saírem, ele foi até o armário ver o que tinha por lá. Em meio a todo o café ele encontrou, dezenas e mais dezenas de maracujás maduros, dos doces e dos azedos. Só de sentir o cheiro forte da fruta seus ombros já abaixaram, sua respiração ofegante, tranquilizou, seus olhos foram fechando e sua boca foi se abrindo. Pegou um maracujá e o cheiro bem de perto, bem profundo. O comeu como uma maçã, com casca e tudo. Deitou no chão, riu e dormiu. Até o amanhecer.

domingo, 12 de setembro de 2010

um céu de brinquedo

o pequeno garoto, do alto de seu tênis all-star azul número 25 que acabara de ganhar de aniversario, desbravava os galhos do quintal na noite fresca de primavera. Na sola, algumas folhas grudadas do fim do inverno, enquanto nas mãos buscava a flor da primavera (a planta, a mãe tinha explicado que a estação não existia por causa da árvore, e sim, o contrário).

Pra alcançar a flor teve de se apoiar no galho, e pra se apoiar, acabou se espetando. Não entendia porque uma planta tão bonita tinha espinhos que não deixavam chegar perto dela, só com muito cuidado. Com o dedo espetado, deu um grito engolido, soltou um palavrão que ouvia o irmão dizer quando estava bravo, mesmo sem saber o que significava, 'filho da puta', na inocência. Chupando o sangue do dedo, não gostava daquele sabor de ferrugem que tinha o sangue, e começava a pensar se as coisas enferrujavam porque estavam sangrando de velhas. Começara a imaginar se todas as coisas tinham sangue e coração, e começou a ficar com dó da sua bicicleta, que ficou abandonada e se avermelhou toda. Não dava mais pra usar. Começou a se culpar por ter matado a bicicleta, no começo teve um medinho, mas pensou melhor e viu que se ela realmente tinha sangue e coração, ela devia ter ido pro céu das bicicletas, já que ela sempre foi uma bicicleta muito boazinha, sempre o ajudou quando quis brincar, e só o derrubou uma vez, mas ele sabe que não foi de propósito.

Olhou pro céu pensando na bicicleta e que agora ela devia estar por lá, toda azul e brilhante, correndo dum lado pro outro, levando algum anjo pra dar uma volta.

Tirou o dedo da boca e viu que tinha parado de sangrar, olhou pro céu de novo e rezou do jeito que tinham lhe ensinado. Pediu pra papai do céu que cuidasse bem da bicicleta e que ela olhasse por ele lá de cima agora.

A mãe chamou pra jantar quando ele acabou de falar amém. O garoto correu até a cozinha e chegou tão rápido que se surpreendeu.

Antes de dormir, se ajolheu na cama e agradeceu, a bicicleta, por ter lhe dado aquele empurrãozinho, ele sabia que só podia ter sido ela.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

aos irmãos




    sentado, pensava e consigo conversava  
      - que coisa 
      - são pessoas fantásticas, não é? 
      - absolutamente... 
      - ... 
      - sabe o que eu acho? 
      - ...diga - que desse jeito não se encontra, nem no gibi, nem na tv ]
      - é... acho que é bem por aí 
      - ... 
      - quem sabe, videogame? 
      - é... quem sabe... 
      - ... 
      - ...  
            e não se acha, nem no videogame

          sexta-feira, 3 de setembro de 2010

          cansado no paraíso



          Foi assim que me senti assim que cheguei. Os pés estavam em frangalhos. Não imaginava que teria de vir caminhando. Sempre que pensava nisso achava que, se eu viesse, seria voando, flutando, nadando... Nunca andando. Bobo eu, de não imaginar que seria da forma mais simples.

          Eu até tentei correr em alguns momentos, mas não adiantava. A gente descobre que não escolhe muita coisa.

          Eu não pequei, eu não menti. Em todo esse tempo eu tentei sorrir pras pessoas, mesmo sem estar contente. Tentei ouvir as palavras, mesmo quando me tapavam os ouvidos. Tentei enxergar na escuridão. Tentei sentir na solidão.

          Sempre quis ser mais forte, mais corajoso, mais jovem, mais esperto, mais bonito. Queria que nada me doesse, sem saber que é da dor que a gente aprende muita coisa. E, por nossa sorte, no amor a gente aprende mais ainda. Eu não pequei, nem menti. Eu também não morri, se é isso que você está pensando. Eu apenas descobri que precisava caminhar. Esse era o único jeito de chegar. Estou cansado. O caminho foi longo.

          Isso é um sonho, caso você não tenha percebido. Um sonho desses que em meio a todas as coisas que podemos fazer dentro dele, optamos por caminhar. Um sonho de verdade. Desses de acordar cansado, mas feliz. Desses de acordar e nos contar uma mentirinha. Que se sonhamos em caminhar, podemos voar enquanto estamos acordados.

          Eu não caminho sozinho, as pessoas em minha volta estão comigo, dentro e do meu lado. Elas caminham do mesmo jeito que eu, e me apoiam se eu tropeçar. Assim como eu segurarei as suas mãos, sempre que precisarem. Nós estamos todos cansados. Os pés em frangalhos, mesmo de andar sobre o algodão. Nós não pecamos e nem mentimos.

          E por hora, só queremos descansar.

          Ao menos até acordar.

          segunda-feira, 16 de agosto de 2010

          vamos falar de carne?

          Olha só, sabe a rua da quitanda? Então, pega ela, desce uma.. duas.. três quadras... aí você vira a esquerda e é a terceira casa desse quarteirão mesmo, uma de portãozinho marrom... não, não tem erro não, é entre dois terrenos baldios...

          Vamos falar de carne?


          Na frente do portãozinho marrom tinha um cachorro sujo, deitado, fedido, cheirando a carniça daquelas que já deixaram de apodrecer já fez uns 6 dias... quando alguém passava, ele só fazia companhar com os olhos, não se sabe se por preguiça ou se porque não conseguia.
          Ao passar pelo cachorro se depara com aquele tal portão marronzinho... de ferrugem já né, de tão velho que está...
          Quando sua mão já está bem próxima de tirar o trinco já aberto do portãozinho, ouve uma voz grossa, meio esgarçada, vindo de trás.

          _Moço? Ô Moço! O senhor é o moço que veio pra olhar a casa fedida? (é uma senhora de uns 40 anos, com alguns quilos a mais, cabelo comprido, semi-corcunda, com a bunda pra dentro)
          _Hum...é, acho que sou eu mesmo... (olhando)
          _Ai, graças a Deus! Fui eu quem chamou, sou a Ruth, prazer. (se oferecendo pra dar um beijinho no rosto)
          (o beijinho é dado)
          _Hum... bom, eu sou o Carlos, mas o pessoal já deve ter te informado quem vinha...
          _Ah não, não informaram não, mas pra ser bem sincera eu já sabia, viu... é que uma amiga
          da minha prima trabalha na padaria do lado da sua repartição, e ai o Dieguinho, lá da delegacia mesmo, sabe? Então, ele tá saindo com essa amiga da minha prima, aí eu pedi pra minha prima ver com essa amiga dela se ela sabia quem era que ia vir ver o meu caso... sou muito curiosa, sabe? (ela tinha de saber se era um homem bonito ou não)
          _Hum...entendi...bom, já que a senhora está aqui podia me dar mais detalhes do caso... o que é que
          anda acontecendo?
          _Bom, primeiro a senhora está na céu... Me chame de “você”, tá bem, meu bem? Pois então,
          Carlinhos, eu me mudei pra cá há pouco, sabe? Estava na Europa, morei uns tempos em Paris, em Roma, fiquei um pequeno período em Londres, também vivi na Espanha, na Holanda, em Portugal... Passei um bom tempo por lá sabe, eu AMO aquele lugar... Mas infelizmente tive de voltar pra esse paisinho aqui... minha irmã pediu pra eu redecorar essa casa aqui pra ela... e eu não pude recusar sabe... irmã... já viu como é...
          _Hum...sei.
          _Então, ai eu vim parar aqui nesse fim de mundo, mas não tem problema não viu, porque acima de
          tudo eu sou muito humilde, não me importo com essa vizinhança barulhenta e fofoqueira, com essa pirralhada jogando aquela porcaria de futebol no portão da casa de minha irmã, nem com aquele mendigo louco e imundo que passa todo dia pedindo coisas, acredita? Hahahahaha, ai ai...
          _Hehe.
          _Bom, isso tudo eu até suporto sabe, mas essa casa da frente Carlinhos...ai essa casa da frente! Desde o dia que eu cheguei já vi esse casebre caindo aos pedaços e com esse vira-lata idiota ai na frente já achei que fosse abandonada e já pensava em mandar minha querida irmã compra-lá para que a redecoração da casa pudesse se tornar uma pequena reforma, ia ficar divino, ainda mais pra essa espelunca de bairro... Ai eu acabei falando com a vizinha da casa de baixo e ela disse que tem gente que mora lá sim, mas não me falou muita coisa mais sabe...é uma mulherzinha aquela lá, viu Carlos, e ainda pensa que ninguém sabe que ela trai o marido com o encanador que vai lá todo santo dia, mas eu sei de tudo e olha que estou aqui não faz nem 2 semanas.
          _Certo, bom, mas quanto a casa...
          _Sim, vou continuar falando, você me interrompe, oras... bem, acho que foi antes de
          anteontem, ouvi um grito muito alto vindo de lá, um não, diversos, gritos de homem, duraram uns dois minutos, e depois, mais tarde, subiu cheiro horrível, e ficou perdurando até ontem mais ou menos. Eu perguntei pra vizinha vadia e pra outras pessoas se elas tinham ouvido, mas elas claramente desconversavam, sabe? Bando de gentinha...
          _Hum... ok... o registro da casa está em nome do Sr. Antonio Coelho de Suntra, e pela
          documentação parece que ele é o morador aí já fazem 5 anos e nunca deu problema... A senhó...você o viu sair depois desse dia dos gritos?
          _Carlos, eu NUNCA vi esse homem sair de casa, será que tá difícil de entender isso? Eu
          só ouvi esses gritos e fiquei desesperada sabe, ninguém me falava nada, então chamei vocês!
          _Tá certo, então vou entrar lá e conversar com esse tal de Antonio...você fique
          aqui por favor. (Aliviado)
          _Tudo bem Carlinhos, eu que não ia querer entrar naquela casa imunda mesmo, vou pra
          casa de minha irmã, se puder por gentileza passar lá após ver o que aconteceu...para tomar um chazinho mesmo... não deixe de vir, está bem? (com a mão no ombro de Carlos)
          _Ok, ok...
          _Vá lá então, cuidado hã...


          Ruth se afasta em direção a sua casa. Carlos fica um pouco pensativo e se surpreende
          parado. (estava pensando na quantidade de coisas desnecessárias que aquela mulher conseguiu falar em tão pouco tempo - e em como ela se parece com sua tia Raquel - e pensa em relações de nomes e se isso faz sentido ou não) Sem mais delongas segue em direção a casa de portão marrom. O cachorro se mantém intacto, salvo por um ruído que parece um bocejo de boca fechada. Se é que isso é possível. Carlos adentra.

          _Sr. Antonio?! (em voz tranqüila) barulho do portão se abrindo é maior que o volume de sua voz.
          _Sr. Antonio!!(já levantando um pouco a voz)
          _Eita...(lamentando nenhuma resposta)
          _SR..ANT..!
          _Pois não?

          A interrupção duma frase costuma causar um pequeno instante de silêncio e até
          mesmo um leve engasgar no interrompido, ainda mais quando a voz que o interrompe sai de surpresa das costas do orador inicial. É de dar calafrios.

          Vira-se suavemente, ainda meio assustado e se deparo com esse homem abatido, com olheiras profundas, nem o moletom velho e surrado disfarça o quão magro ele é. O cabelo ralo e um sorriso carismático, causam simpatia o suficiente pra lhe acalmar do susto.

          _Minha nossa, Sr. Antonio! Que susto! Hehe, digo, você é o Sr. Antonio, certo?
          _Hehehe, me desculpe, não queria assutá-lo, Sr...?
          _...Carlos!
          _... Sr. Carlos! E sim, sou eu mesmo! Mas enfim, o que o senhor deseja? (sempre com um ar muito simpático)
          _ Hum... então Sr, acho que lhe devo explicações, afinal o senhor me pegou abrindo o portão de sua casa. Hehe, bem, eu vim aqui porque ligaram pra nós dizendo que ouviram uma série de gritos muito altos a 3 dias atrás e, desde então, o senhor não foi mais visto fora de casa, a vizinhança estava preocupada com um cheiro forte que vinha da sua casa também.
          _ Hum... entendo (um momento de seriedade)
          _ Então... tá tudo certo?
          _ Oh! Sim! Está tudo certo, sim! Hehehe, se eu te contar o que aconteceu você não acredita.
          _ Ora, diga-me e vejamos se lhe dou um crédito, hehehe
          _ Hehehe, acredita que eu estava consertando a descarga do vaso sanitário. Ele tinha entupido e joguei diabo verde pra desentupir, mas quando tentei dar a descarga ela resolveu parar de funcionar também, aí minha descarga é dessas antigas, sabe? Que fica em cima do vaso? Então, tive de subir no vaso pra arrumar a bendita, e aí que aconteceu. Acabei perdendo o equilíbrio, e por instinto segurei a cordinha da descarga que veio abaixo, quebrando tudo! Descarga, vaso, eu mesmo, hehehehe. E pra piorar o diabo verde começou a me corroer a perna, por isso dos gritos. Enfim, foi um dia tragicômico. Hehehe...
          _ Meu deus, Seu Antonio, que dia, hein!
          _ Pois é...
          _ Bom, mas e por que o senhor sumiu?
          _ Sumi? Não, não sumi não... hehehe, tanto que acabei de vir do açougue, hehehehe.
          _ Hehe, tá bem... bom, desculpe a intromissão então, aí. E espero que dê um jeito no seu banheiro, logo. Prazer em conhecê-lo.
          _ Obrigado Sr. Carlos.
          _ Passar bem!
          _ Até..!

          Carlos saí devagar, observa meio de canto de olho o Sr. Antonio fechando o portão e entrar na casa, meio que mancando das duas pernas, achou meio estranho, mas associou logo a queda. Agora ele estava mais preocupado com o facto de ter de encontrar a dona Ruth e avisá-la que estava tudo bem. Não tava nem um pouco afim de ouvir todo aquele blá blá blá de novo. Parou em frente a casa e hesitou em tocar a campainha. Voltou-se para o carro e saiu de lá depois de algum tempo com um pedaço de papel, que colocou cuidadosamente por baixo da porta. Deu um suspiro de alívio misturado com coisa errada, mas ele realmente não tava pronto pra encarar aquele lero-lero de novo. Pegou seu rumo.

          --

          Passaram as semanas que viraram um mês, quando o telefone toca, como todo dia, na mesa de Carlos, na delegacia.

          _ Alô?
          _ Alô! Carlos, ligação externa pra você, disse que é urgente.
          _ Pode transferir.
          _ tshhhhh
          _ Alô? Detetive Carlos?
          _ Sim, eu mesmo. Com quem eu falo? (conheço essa voz...)
          _ Carlinhos, é a Ruth! Lembra de mim?
          _ Oh! Ruth! Claro, da ligação por causa do vizinho... (droga, não...)
          _ É claro que lembra, né, meu bem? Não tem como esquecer da Ruthinha aqui. Hihihihi
          _ Hehe (...)
          _ Recebi seu recado, aquele dia, mas fiquei muito sentida, estava com o chá pronto, te esperando... Quando peguei o recado no chão, ainda deu tempo de abrir a porta e ver seu carro indo embora.
          _ Ah, sim, é que não quis te incomodar, podia estar no banho, achei mais fácil deixar um bilhete e..
          _ Sem problemas, Carlinhos! Tudo bem, tudo bem! Eu entendi muito bem! Eu sei que você ficou com medo de ceder aos meus encantos. Você não é o primeiro, meu bem!
          _ ...ãhn, é... (QUE?!)
          _ Tudo bem, não foi pra isso que eu liguei, eu respeito seu tempo. Eu liguei porque aconteceu de novo, Carlinhos, você acredita?
          _ O quê?
          _ O vizinho, os gritos, o cheiro, enfim, a mesmíssima história de antes, que você fez questão de NÃO ME EXPLICAR no bilhete. Logo, como não sei o que é, resolvi ligar de novo.
          _ Fique tranquila, Dona Ruth, não há de ser nada, o Sr. Antonio me pareceu muito boa gente.
          _ Tranquila eu estou, só esse fedor que não passa. E agora também tem aquele cachorro infernal que fica latindo e uivando a noite inteira, saco!
          _ Hum... você chegou a tocar, lá, ver o que era?!
          _ Moi!? Tocar aquela campainha fedida? Meu bem, eu nem passo perto daquela calçada!
          _ Mas senh..
          _ Senhora, não, Carlinhos, já conversamos disso! Quando você vem?
          _ Hum, vou ver o que posso fazer.
          _ Ah como assim? Me diga ao menos que dia pra eu poder mandar preparem um café pra você e...
          _ Não sei, senhora.
          _ Mas Carlinh...
          _ Adeus, Dona Ruth. Preciso trabalhar.
          _ Carli...!!
          _
          _

          Desligar o telefone meio que na cara da mulher lhe deu uma boa sensação. Mas ao mesmo tempo subiu um angústia. Tinha simpatizado com o Sr. Antonio, parecia boa gente. Se sobrasse um tempo no final do dia ia aparecer por lá ver como estavam as coisas. E com um dia relativamente tranquilo, assim o fez.

          Chegando lá, o frio subiu a espinha, ao ver urubus sobrevoando a casa do Sr. Antonio. E pra sua infelicidade, não teve como passar desapercebido pela Dona Ruth, que esperava qualquer um passar pela rua.

          _Carliiiinhooos, sabia que você ia vir!
          _ Senhora Ruth...
          _ Veio ve..
          _ Sim, sim, até mais!

          Não tava com paciência pra ouvir fofoca de novo. Mas não adiantou.

          _ Pera, pera, pera, pera aí!!
          _ ...
          _ Eu chamo o senhor aqui e você nem vêm me dar satisfação? Quem é que você pensa que é, hein?
          _ Minha senhora, eu vim aqui, fora do meu horário de trabalho ver se está tudo bem com o Senhor Antonio. E só isso. Muito obrigado por ter me avisado. Passar bem.
          _ Ora, mas que grosseria! Hunf!

          E os dois seguem, batendo o pé. Igualmente irritados. Ela de volta pra casa, ele pro portãzinho marrom, dessa vez sem nenhum cachorro na frente.

          _ Seu Antonio?
          _ Seu Antonio? Tá aí?
          _ Tudo certo aí?
          _ SEU ANTONIO!? (e vai abrindo o portão)

          Carlos vai entrando, dessa vez ele ainda sente o fedor. Ele conhece aquele cheiro. É carniça. Isso explica os urubus. Ele vai entrando calmamente, pra onde o cheiro vai se tornando mais forte. A casa tinha um corredor para o quintal e de lá ele escuta um choro de cachorro, “(é de lá que vem o cheiro! Esse cachorro é fedido demais) e se tranquilizou um pouco. Caminhando aos passos lentos, atento a qualquer barulho, ele escuta o som das patas do cachorro vindo em sua direção. Ele está mais sujo que o normal. E quando o cachorro dá a pata e ele passa a mão na sua cabeça. Tomando um susto ao ver a palma da sua mão toda vermelha. Ele sabe que é sangue.

          _Sr. Antonio?

          Continua a chamar, seguindo o cachorro, que vai um pouco a sua frente. Ele houve um gemido baixo. Aperta o passo. Entrando no quartinho dos fundos ele vê: Seu Antonio, jogado no chão, praticamente nú, todo ensanguentado.

          _ Meu deus do céu! Senhor Antonio!
          _ (gemidos)
          _ Vou chamar uma ambulância!
          _ cof, cof, não... cof...
          _ Como assim senhor? Claro que eu vou chamar!
          _ Espere, cof...
          _ O que aconteceu, seu Antonio?!
          _ Calme... eu...
          _ Seus braços! Meu Deus!

          Carlos percebe que os braços dele estão fatiados, faltando um pedaço mesmo, assim com suas pernas, suas coxas, sua panturrilha, está faltando pedaço em todos os membros do seu corpo. Só então ele observa algumas seringas o chão também. O sangue sai de seus braços. Seu Antonio está mais pálido ainda. Perdeu muito sangue. Ele não sabe se ele ainda pode ser salvo. Mas chama a ambulância mesmo assim. Enquanto seu Antonio varia entre o consciente e o desacordado.

          _ Eu... eu...
          _ Diga, diga, vamos converse comigo, o que aconteceu?
          _ Eu... eu tenho um problema, sabe, Sr. Carlos.
          _ O que é, Sr. Antonio?
          _ Bom, eu me tratei, sabe? Muito tempo mesmo... Tava bem, mas aí me apareceu essa Dona Ruth.
          _ Tratou do quê?
          _ Ela chegou... e foi logo fazendo fofoca, dizendo que eu era maluco, que não saia de casa. Que eu era um nojento. Que eu não prestava. Eu não entendi nada.
          _ ...
          _ Assim que ela se mudou, fui dar-lhe as boas vindas. Ela se fez toda de dengosa, me chamou pra tomar um chá. Eu aceitei, achei ela toda charmosona. Sabe?
          _ ...
          _ Achei que podia dar em algo. Até eu falar que morava na casa da frente. Ela já meio que desconversou. Achou que eu fosse dá casa bonita do lado. Vagabunda...
          _ Mas e...
          _ Aí que começou, Sr. Carlos. Voltou tudo...
          _ ...
          _ Fiquei com muita raiva daquela fofocagem toda, não tinha problema ela me rejeitar. Mas não precisava ficar inventando mentira minha pros outros.
          _ Não entendo...
          _ E isso foi acontecendo e a vontade foi ficando cada vez maior.
          _ Vontade de que, seu Antonio?
          _ Foi crescendo e crescendo
          _ ...
          _ A vontade de comê-la
          _ Mas seu Antônio, não entendo...
          _ Sou antropófago, Sr. Carlos. Esse é meu problema. Não tinha vontades a muito tempo. Mas essa mulher me tirou do sério.
          _ ...
          _ E eu sei que não posso comê-la, para isso eu teria de matá-la, e Sr. Carlos, eu já me tratei eu juro, nunca mais fiz isso, foi só daquela vez. Eu não aguentava!!!
          _ calma, Seu Antônio...
          _ e a vontade não passava, eu tinha de comer a carne de algum jeito e não achei outro. Então fiz isso.
          _ (pasmo com tudo, Carlos fica sem palavras)
          _ Me anestesiava pra cortar esse bifes de mim mesmo, achei que ia passar, mas não passava. Então cortava mais, tava indo bem, mas nessa última anestesia não funcionou acho, desmaiei, não tinha forças pra levantar, cortei meus músculos...
          _ Meu Deus do céu... (ouvia a sirene, talvez ele ainda pudesse ser salvo)
          _ ...

          A ambulância, chega e depressa os paramédicos colocam Sr. Antonio na maca. Carlos diz que ele se cortou sem querer, omitindo toda a história. Acompanha os médicos levando Sr. Antonio até o carro quando ele lhe olha nos olhos de Carlos e diz “Obrigado”, tentando sorrir.

          Carlos fica ainda alguns minutos na casa, enquanto o cachorro lambe um resto de sangue no chão do quartinho. Carlos pensa em muitas coisas nesse tempo.

          Ao sair da casa, encontra Dona Ruth:

          _Carlinhos, que algazarra é essa?

          Ele nem consegue responder. Segue em frente, quieto. Seu estômago embrulha. Ela o enoja. Seu fedor é pior que qualquer outro.

          segunda-feira, 2 de agosto de 2010

          no meio fio




            andavam, se equilibrando:

            - por que você não anda com os braços abertos?
            - ué... porque eu haveria de andar?
            - é muito melhor! você têm mais equilíbrio, não vai cair desse jeito
            - ...
            - ...
            - ...
            - que foi?
            - nada, ué...
            - porque não levantou os braços?
            - gosto de andar com os braços pra baixo...
            - ...
            - ...
            - ...
            - o que foi você, agora?
            - mas que saco! não falei que é melhor erguer os braços pra se equilibrar?
            - é...
            - então!
            - eu gosto de andar com os braços pra baixo.
            - ...
            - ...
            - e se você cair?
            - ...
            - eu não vou te segurar...
            - ...
            - ...
            - ...
            - fala alguma coisa...
            - ...
            - ...
            - eu prefiro andar desse jeito, não tô dizendo que o seu jeito é melhor ou pior que o seu, é só o jeito que eu gosto...
            - eu entendi... mas é que eu...
            - não tem certo ou errado, sabe? não precisa ficar irritado comigo...
            - ...
            - ...
            - eu sei... desculpa, é que...
            - ...
            - ...
            - ... tá tudo bem...



            e chegaram os dois, sem cair nem um sorriso.

          terça-feira, 20 de julho de 2010

          asteróides verdes e fritos




          Foi numa viagem a Saturno que encontrei pela primeira vez um Jupiteriano. Tive que fazer uma escala lá, aproveitei pra dar um rolê rápido, sacumé, né?

          Sempre me falaram que eles eram grandes por lá, mas nunca imaginei que tão grandes. Pra você ter uma idéia, o pé de um jupiteriano tem o tamanho de um carro 1.0 popular aí na Terra. O que pros nossos padrões pode não ser muito grande pra um carro, mas te garanto que quando se trata dum pé, o sentimento é outro.

          Eles não são muitos. Como sabem, o planeta é enorme, talvez pra fazer jus aos seus habitantes, só que é em grande parte gasoso. O que pros jupiterianos não é muito problemas, já que de alguma forma eles conseguem "nadar" em meio a esses gases densos da atmosfera bizarra do planeta. O que eles fazem de forma bastante... curiosa. Eles não simplesmente nadam, eu definiria mais como uma dança sincronizada entre polka e o frevo. Junte isso a gigantes de um olho e a sutilieza dum hipopótamo e... bem, acho que dá pra imaginar.

          Bom, como eu disse, são poucos, e eu conheci um deles, Nibamol, sujeito simpático. E por incrível que pareça, arranha muito bem o português, disse ele que essa região da Terra é muito conhecida pela galera de lá: é um pessoal mais caloroso, mais bacana, menos preocupado, enfim... Perguntou do Carnaval e do Ronaldo, batemos um papo tranquilo, descompromissado. Quando tive de partir ele me pediu pra ir junto. Olha, minha nave não era das maiores, mas tava mais que bom pro tamanho do Nibamol. Que é grande mas duma simpatia que cativa, sabe? Cara bacana, meu!

          Fomos a caminho de Saturno e ele me perguntou porque estava indo até lá. E até aí tava tudo muito bem. Quando disse que estava indo buscar um dos anéis de Saturno pra pedir minha namorada em casamento, ele caiu pra trás de tanto rir. Achei uma falta de respeito. Sabe? Pô, tava dando uma carona, me abri com ele ali. A gente nem se conhecia tão bem pra ele vir tirar sarro. Mandei um papo reto nele. Disse que queria casar e que tinha prometido um anel de Saturno pra ela. E que não havia quem me impedisse.

          Foi aí que ele me falou que havia sim. Os anéis de Saturno pertenciam a um polvo cujo o nome não sei pronunciar até agora. E que ele não abria mão de nenhum deles. Comecei a ficar preocupado, quando o próprio Nibamol me acalmou. Ele disse que conhecia um jeito e que havia de dar certo. Mas que pra isso eu teria que lhe prometer que quando eu casasse a noiva jogasse o buquê tão forte, a modo que caísse em Júpiter, nas mãos de Kitunái, a mais bela jupiteriana. Que se caísse ela teria de se casar com ele. E assim eu lhe prometi. Nibamol me contou que pra pegar os anéis do polvo bastaria eu distraí-lo, com comida. E não poderia ser qualquer uma. O polvo gostava de comer pedras e não eram quaisquer pedras, gostava de comer esmeraldas que eram expelidas dos vulcões de Urano. E se eu conseguisse lhe trazer algumas, haveria tempo para retirar um anel do polvo antes que ele percebesse. E assim fiz. Quando o polvo começou a devorar as esmeraldas, houve a brecha que eu precisava pra pegar um dos anéis, peguei o mais bonito e logo fomos embora.

          No meio do caminho ouvimos o polvo gritar, enfurecido, pela falta de um dos seus anéis, mas já estavamos longe o bastante pra ele não nos fazer mal. Com o anel em mãos, minha namorada se casou comigo e como combinado jogou o buquê tão forte que caiu na mão de Kitunái, que se casou com Nibamol, que também buscou um anel de Saturno para lhe dar.

          E aí o polvo nem mais ligou. Viu que se por um ou dois anéis pudesse haver tanta alegria, que só o deixassem com um, para ele também poder ser feliz. Os outros ele deu pro universo. E estão por aí pra serem achados.

          quarta-feira, 7 de julho de 2010

          alvorada de inverno



          - ...
          - ...
          - tão bonito esse amanhecer...
          - ...não é?
          - é... lindo
          - e é algo que vemos tão pouco...
          - ...
          - digo, o pôr-do-sol a gente vê todos os dias, cada dia na sua beleza diferente mas igualmente deslumbrante...
          - ...
          - e o nascer do sol é algo que não estamos tão acostumados, por mais que a gente acorde cedo, é difícil pegar ele nascendinho assim
          - é... tem razão
          - a não ser no inverno
          - ...
          - o sol nasce mais tarde
          - ...
          - é o que me faz pensar sobre o tempo das coisas
          - ...
          - a gente vive tanto cada dia que acaba esquecendo de observar o todo
          - ...
          - se não consigo ver a alvorada em outras épocas, sempre têm o inverno pra eu poder vê-la com mais frequência
          - ...
          - ...
          - é que a gente acaba esquecendo que tudo tem seu tempo
          - ...
          - e que às vezes, mesmo sem perceber, o inverno chega
          - ...
          - e aí, vemos a alvorada quase todos os dias
          - se acordarmos cedo
          - ...
          - ...
          - mas mesmo assim, não tão cedo
          - ...
          - ...
          - e é bonito mesmo
          - é...










          - sabe duma coisa?
          - ...
          - acho que isso tudo é sobre saber esperar
          - ...e você não sabia?
          - ...acho que ainda não sei
          - ...
          - ...
          - é...
          - ...
          - ...

          sábado, 12 de junho de 2010

          o dia em que o tempo nos disse


          Foi incomum. As pessoas ficaram assustadas. Eu fiquei assustado. Mas passado um certo tempo tudo ficou mais tranquilo. O bacana é que aconteceu com todo mundo. É igual você perguntar o que você tava fazendo quando caíram as Torres Gemêas (eu estava curiosamente ouvindo rádio).

          Naquele dia eu tava apressado, como todo mundo era naquela época de alguns dias atrás (risos). Se não me engano eu estava correndo porque precisava terminar um desenho pra ser entregue no dia seguinte. Pois tinham me pedido naquela manhã. E por mais absurdo que isso pareça ser, naquela época era completamente corriqueiro. Eram três e meia da manhã quando eu abria a minha terceira lata de energético. Já tinha decidido virar a noite pra completar o desenho. Foi quando aconteceu. Apareceu esse cara que todo mundo diz que viu. Ele vestia roupas largas e vazava areia pelas calças também largas, caia bravamente sem cessar. Seu rosto era confuso, tinha números e ponteiros de metal, uns girando muito devagar e outros tão rápido que eu sequer podia perceber se não prestasse muita atenção. Dos seus braços saiam luzes como se fossem do sol e caiam litros d'água que não molhavam nem a areia nem meus papéis. Era uma visão que deveria assustar, mas era estranhamente familiar, não como um dejà vu, mas sim como se ele estivesse lá sempre. E quando comecei a sentir o cheiro de guardado envolto por um cheiro que jamais havia sentido, sua voz onipresente soou, não de sua boca, mas como se de dentro dos meus ouvidos. E isso aconteceu com todos.

          Depois do que ele nos disse, as coisas ficaram desse jeito. Acho que todo mundo meio que se tocou do que tava fazendo, sabe? Esse correria toda da vida e tal...

          O mais engraçado é que foi preciso o tempo parar pra nos falar que ele já tá correndo pela gente, que a gente não precisa correr por ele.

          Foi um dia estranho.

          Mas foi um bom dia.

          sexta-feira, 7 de maio de 2010

          A Inacreditável Ultra-Moça



          A visão que tive naquele dia não é fácil de se esquecer. E eu nem quero, na verdade.

          Os dias estavam calmos demais, na ocasião eu havia saído pra tomar uma Coca-Cola, sozinho, como a muito não fazia. Tomar a Coca, não sair sozinho, isso já estava se tornando corriqueiro o suficiente pra eu me chatear. Sair sozinho, não tomar a Coca-Cola.

          O cheiro que vinha com o vento era desses das flores que só desabrocham a noite, perfumando o escuro. Tudo estava calmo demais. Já faziam alguns dias que estavam assim. E foi quando percebi o copo derrubando a Coca, o qual eu sequer havia bebido, que me dei conta do tremor do copo, que era o tremor da mesa, que era o tremor do bar, que era o tremor do chão. O mundo todo a minha volta tremilicava. Eu já tinha visto isso acontecer, e não me surpreendi quando aquela massa escura, disforme e obstinada surgiu em frente aos meus olhos. Ela estava em minha busca e não era a primeira vez.

          Fiz o que sempre fiz ao ver essa massa. Fugi. Fugi como se não houvesse amanhã. Porque se ela me alcançasse de facto, poderia até haver, mas não seria como hoje ou ontem. Mas dessa vez a massa parecia mais esperta, após algum tempo correndo, ela me encurralou. Me vi sem saída. Foi quando aconteceu.

          O cheiro das flores da noite já tinham desaparecido sob o cheiro de xorume da massa, que nesse momento, foi completamente sobreposto por um odor absolutamente suave e doce. Não sabia identificar muito bem o que estava acontecendo. Isso era novo.

          Foi aí que tive a tal visão. Era incrivelmente luminosa, veio voando, de trás duma nuvem, eu acho. Ela olhou pra mim e sorriu. Olhou para a criatura e cantou. Cantou sem palavras, sua voz amansava. A massa aos poucos foi se encolhendo, encolhendo e começou a ganhar cores antes de implodir em milhares de particulas brilhantes que se foram com o vento criado pelo vôo dela, que foi voando, mas que mais parecia estar dançando.

          Eu sei que aquela massa pode voltar, mas agora, sempre que olho pras nuvens vejo outras cores no céu, e sei que não preciso mais me preocupar.

          sábado, 24 de abril de 2010

          só pra falar da beleza das mexericas

          é um dia qualquer, como nenhum outro, só que dessa vez não é domingo, cá estou sentado digitando meio que sem pensar:

          - a vida não é maravilhosa?!
          - ... hehe, é sim... mas por que isso agora?
          - minha nossa! como assim?!
          - ...
          - ...
          - ...
          - ué... a vida é maravilhosa, olha pra tudo isso! O céu que muda de cor, o sabor das comidas, a música!
          - .... hehe, justo...
          - olha essa mexerica...
          - ...
          - você pode abrir a casca dela sem nenhum instrumento, você usa as próprias mãos e pouco esforço...
          - é...
          - e ainda por cima, ela é altamente caridosa
          - ...
          - já vem dividida em gomos, para distribuirmos para os outros.
          - faz sentido...
          - ...
          - faz mesmo...
          - é...é a vida
          - ...
          - e viva as mexericas


          e viva.

          quinta-feira, 15 de abril de 2010

          duas colheres de maus hábitos



          Tudo o que ele pensava era no futuro, em como ia ser e porque ia ser assim. Ele imaginava os detalhes, os dias, as horas, os minutos, os segundos. Nada podia lhe fazer tão mal.

          E foi numa certa nona-feira, que ele já havia decidido tomar uma xícara de café:

          - amigo, um expresso curto
          - tá bem, açucar ou adoçante?
          - açucar, obrigado
          - ...
          - { Em que horas será que vou almoçar no domingo? Será que vai ter strogonoff de fôrno? Porque se tiver é melhor eu não acordar muito tarde... porque aí eu vou ficar sem fome, e eu gosto de comer strogonoff com fome... Será que lá pelas 14h fica pronto? Porque aí eu acordando umas senhor 9h30 acho que tá bom... hummm mas e se não tiver strogonoff? Aí eu nem senhor vou fazer tanta questão de comer com fome... hummm... que difícil, o que eu faç...}


          - senhor?
          - oh! estava distraído, hehe, me desculpe
          - hehe, tudo bem... aqui seu café... e o açucarzinho...
          - obrigado!
          - ...

          E ele adoça e toma seu café e pensa no futuro, pensa naquelas pessoas que lêem o futuro nas borras de café, e pensa se isso pode dar certo, observa o que restou na sua xícara e tenta encontrar algum padrão que lhe diga algo, quem sabe talvez sobre o que fazer no domingo:

          - SENHOR!
          - minha nossa!
          - Senhor! Me desculpe, eu sou novo aqui, comecei hoje!
          - ...
          - ...
          - do que você está falando?
          - como assim, senhor?
          - não tem nada de errado, você me trouxe o café e está tudo bem
          - mas... o senhor não colocou o açucar que me pediu?
          - claro! duas colheres, como sempre.
          - ...
          - ...
          - o que foi, rapaz?
          - senhor, eu me enganei...
          - como assim?
          - é que eu me confundi, o que eu trouxe pro senhor não fo..
          - ora, sem problemas, um pouco de adoçante não faz mal, hehe
          - ...
          - ...
          - ...
          - meu jovem, o que houve?
          - é que era sal
          - ...
          - ...



          E ele parou pra pensar.