sábado, 2 de julho de 2011

nunca conheço os reis que merecem o céu

Sou eu. Estou aqui. Pra mim. Sempre é agora. Estou vendo o primeiro homem caminhar. Ele sabe que pode correr com as duas pernas. Ele corre. E corre. E corre. Pra mim só há o agora. Não há outro tempo. Estou aqui para falar do tempo. Ele não é o que você pensa. Não é um linha reta. Eu estou no tempo todo. É meu lugar. É meu espaço. Você caminha pelo seu quarto. Seu espaço. Para mim o tempo é o espaço e o seu espaço é só uma linha reta pra mim. Nele só posso seguir em frente. Não tenho escolha. É difícil de compreender? Imagine que o que eu faço com o tempo é o que você faz com os seus espaços. E o que você não faz com o tempo é o que eu não faço com o espaço. Pra mim agora é noite. Agora é dia. Agora um rei fez coisas horríveis. Agora uma mulher teve uma filha. E agora essa filha teve outra filha. Que teve outro filho. Que é você. Passeio por aqui como você passeia no parque. Mas não se engane. Aqui é grande o bastante. Muito maior que o seu espaço. Aqui não conto metros ou quilômetros. Aqui sequer conto segundos ou minutos. Não inventei isso. Isso é pra vocês. Aqui tudo é agora.  E pra você também deveria ser. Pra vocês deveriam. Sou sua anti-matéria. Sou seu mundo bizarro, ao contrário. Sou e sempre sou. Mas jamais estou. Sempre passo e percorro. Não posso ficar. Tenho todo o tempo do mundo. Mas o espaço corre. E eu não consigo pará-lo. Em todo esse tempo que conheço. Nunca conheço reis que merecem o céu. O céu? Claro que ele existe. O paraíso. Ele não está no espaço nem no tempo. Ele é ainda maior do que isso. Você consegue conceber? Reis jamais. Soberanos sobre o espaço, conquistam cada pedaço. Se soubessem que eu olho daqui do tempo sei que o espaço passa e não tem como trazê-lo de volta. Talvez estejamos falando da mesma coisa. Sei de tudo que acontece. Quando, eu não sei. Pra mim é sempre agora. Está tudo acontecendo. Só não consigo te dizer bem aonde. Preciso esperar chegar. Pode ser longe ou não. Se o tempo é relativo, o espaço também é. 

terça-feira, 31 de maio de 2011

"while it's not impossible for flowers to bloom and grow next to graves"

“vivemos como pinguins no deserto” dizia a canção, e eu sabia que ela falava não só de mim mesmo, mas como de muita gente que vive ao meu redor. Digo, o quanto nos adaptamos? É esse nosso verdadeiro ambiente? Quem estabeleceu isso tudo? Não é muito claro pra todos que há 100 anos atrás as coisas eram absolutamente diferentes? Por que eles estavam errados? Por que nós estamos certos? O que fizeram com a magia? O que fizeram com os sonhos? As pessoas sonham em ser ricas,  terem muito dinheiro. Olhe de longe e perceba o quanto ficam felizes com esses pedacinhos de papéis. Ou com meros números em uma tela de cristal liquido ou de antiquados raios catódicos. Vivemos numa era dos números e da exatidão. A ciência sobre a fé. A inteligência sobre a sabedoria. O ser humano é feito de números? Digo, não estamos apenas deixando as coisas mais fáceis pras máquinas? Seres humanos são emoção, são letras, são curvas abstratas, imprevisíveis. Aí é onde mora nossa maior beleza. Sonham em ter muito dinheiro para não terem que trabalhar, pra poderem fazer o que gostam... Isso não soa estranho demais? Digo, se todos são assim,  por que não simplesmente ajudamos uns aos outros?

“por que não podemos viver como tribos?” completa a música, contando-nos um pouco sobre a nossa própria história e arrogância.

domingo, 3 de abril de 2011

os trapézios de Bauru

O ano era 2003, muitos acreditavam que era um ano emblemático para haver contato extraterrestre. Não houve relato que denunciava um contato um de fato, porém, no dia 17 de outubro três garotos afirmaram ter avistado objetos voadores não identificados no céu. Em volto a muitas dúvidas e incertezas nada pode ser provado naquele momento e o caso foi abafado, no entanto muitas coisas ficaram mal explicadas naquele dia. Seguem os relatos dos três rapazes, colhidos pela ABIN na manhã posterior ao incidente que ficou conhecido como “Os Trapézios de Bauru”.

D.M.B.S, 18 anos
A gente tava andando de boa ontem, tavamos conversando, voltando da casa do D., a gente sempre fez esse caminho . Aí estávamos virando a rua e o T. falou pra gente parar e olhar lá no céu, lá no horizonte. Atrás das nuvens... Fiquei embasbacado, sempre quis ver OVNIs, acho que até já tinha visto alguns, mas não tão bem quanto ontem.

A.T.P, 18 anos
Foi estranho, ontem o dia tava com um ar diferente, sabe? Parecia que tinha algo pra acontecer mesmo. Sempre morri de medo dessas coisas, mas ontem depois de ter visto aqueles pontinhos no céu me senti mais em paz. Eles tavam bem distantes, não conseguimos distingui-los logo, observamos muito tempo eles se mexendo bem devagarzinho quase imperceptivelmente, quando de repente veio aquele risco de fumaça no céu, acho que nós três levamos um susto naquele momento.

T.A.B.S, 17 anos
 (chiado)..é, eu sei o que são, não adianta vocês falarem que não é não, eu sei sim! Eram dois UF(chiado) tá bom, tá bom, vou falar o que aconteceu exatamente, mas então vocês adm(chiado).

D.N.B.S, 18 anos
Eles passaram voando bem rápido, por um momento perdi de vista.

A.T.P, 18 anos
Segui com os olhos o rastro de fumaça meio que procurando algo. Engoli bem seco quando me deparei com aqueles dois enormes...

T.A.B.S, 17 anos
Trapézios. Eram dois enormes trapézios voando. Eles não pareciam com naves espaciais que a gente vê em filmes e coisas assim. Mas quem disse que precisa parecer?  A tecnologia é diferente, vocês sabem dis(chiado) por(chiado) eu (chiado) (chiado) falei.

D.M.B.S, 18 anos
Fiquei olhando meio sem saber o que fazer, meio abobalhado, eram gigantescos mesmo.

A.T.P, 18 anos
E de repente... eles voaram, sumiram, não dá pra acreditar ainda.  Eu senti por alguns momentos como se aqueles enormes trapézios tivessem olhando pra gente, encarando mesmo sabe?

T.A.B.S, 17 anos
Não tenho dúvida, sabe porque? Isso meu (chiado) e meu amigo não sabem, mas ontem a noite eu voltei lá, sozinho. Fiquei olhando pro céu de novo, procurando alguma coisa. Tava quase amanhecendo quando, do nada, tinha novamente um trapézio no céu. No escuro dava pra entende-lo melhor, feito basicamente de luz. Muito bonito. Perguntei o que era aquilo e veio uma luz direcionada na frente dos meus pés. Quando a luz apagou, no lugar tava essa correntinha de prata que brilhava no escuro. Perguntei se era radiação e eles me responderam pela mente que não. Guardei com cuidado e agradeci.

D.M.B.S, 18 anos
O T.? Não, não acho que ele dormiu a noite toda, pelo menos ele acordou bem depois da gente, no outro quarto.

A.T.P, 18 anos
Sei lá, acho que pode ser que sim ou pode ser que não.

T.A.B.S, 17 anos
Amanheceu. Eles foram embora e eu fiquei ali olhando e pensando o que tinha acabado de acontecer. Voltei pra casa do A. e deitei na cama do outro quarto. Tava sozinho. Mas sabia que nós não estávamos mais.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

a história de um sapo e uma abelha e os fatos decorrentes do seu infortúnio casamento

Os sentimentos eram muito claros. Desde aquele dia em que o sapo faminto recusou alimentar-se daquela linda abelha que voava próximo às taboas do córrego. Foi a paixão a primeira vista. Ele não estava entendendo muito bem, toda a fome havia sumido só de vê-la por um instante. O perfume do brejo parecia acentuar-se a medida que a pequena voadora batia suas asas sobres as flores, espalhando todo aquele maravilhoso cheiro de flores com mel.
Ele sabia que seu nome só podia ser Mel e também sabia que ela não o notara ainda. No entanto o destino muitas vezes nos da oportunidades que não podemos deixar escapar. Quando a pequena Mel voava delicadamente pelo brejo, espalhando o pólen e o glamour que aquele pequeno córrego jamais tinha visto, uma armadilha: a aranha. Sua teia a pegou de jeito. A chegada do fim parecia  irremediável. Foi  quando apareceu o herói. O sapo pulou do meio das folhas úmidas espirrando água por todo o lado e quase como um passe de ballet lançou sua língua certeira na pavorosa aranha. No meio do caminho pensou que resolvia duas coisas com uma só. A fome e a pequena Mel.
A abelha o notou. E logo caiu em amores. Eles olharam bem fundo e:

- Roobéti – disse o batráquio, todo cheio de si
- Bzzzz Bzzzz – zumbiu a pequena listrada, com a delicadeza dum violino desafinado

Infelizmente eles não podiam se comunicar. Mas isso não os impediu. Casaram-se. Isso foi a muito, muito tempo.  E então surgiram os Sapo-Abelhas, que espirram mel ao invés do usual veneno e se tornaram uma iguaria fina para as sobremesas, principalmente na região da Guatemala. E as Abelhas-Sapo que são altamente venenosas e extinguiram a população de aranhas na África.

sexta-feira, 25 de março de 2011

um dia pensei que o rádio estava tocando

Mas não estava. Eu estava apenas sonhando. E naquele sonho eu podia enxergar belonaves espaciais que voavam a mais de quinhentos mil megalometros por milésimos de segundo. Elas eram tão rápidas que não era possível enxergá-las, mas eu conseguia. Por alguns segundos eu conseguia. E delas, as belonaves, eu ouvia as melodias que não poderia distinguir se eu não tivesse sido treinado arduamente na técnica de pegar mosquitos no escuro. Podia pegá-los com a língua se eu quisesse. Bastava me concentrar no vento ventado pelas asas microscópicas, mas ainda assim, tinha que me concentrar meio joule a mais e ouvir os pensamentos trocados entre elas. Assim podia ouvir também as belonaves. Que apesar não poderem ser vistas, eram duma beleza magnifica. Com grandes asas emplumadas, sua carcaça era com se banhada no mar de bronze, suas turbinas soltavam luzes multicoloridas capazes de entorpecer não somente as mentes, mas os corpos de quem prestasse um minuto a mais de atenção. Por trás da esquadrilha de belonaves, se encontravam corpos celestes de uma magnitude imensurável. Eram como sóis coloridos, com mais cores que um arco-íris, imagine um pôr-do-sol de cada cor, foi o que pude ver naquelas tardes em menos de duas horas. Quando anoitecia era como se as luas, conversassem, uma triste, uma feliz, uma orgulhosa e uma tímida, todas no céu ao mesmo tempo. E no chão tinha o mar e os peixes, eles traziam pequenos corais nas costas, dessa vez duma só cor. Eram todos prateados. Mas com diversos brilhos diferentes. Olhando do alto parecia que estava chovendo de lado. Gotas de frio prateado. Ao meu redor tinha essa redoma de seiva e carinho, nesses tons alaranjados, muitos deles, alguns não conseguia reconhecer, ela expandia minha percepção das coisas e dobrava meus sentidos, dos cinco passei a ter dez. Quando pensei que o rádio tocava, parecia até Tchaikovsky, foi quando pensei que podia estar sonhando e pensei que acordei. O rádio estava tocando a abertura de mil oitocentos e doze. Depois disso nunca mais soube se estava dormindo ou acordado.

terça-feira, 22 de março de 2011

quando os cascos de tartaruga deixam de ser vermelhos


- ...as coisas estão ficando estranhamente bonitas
- uououououo!
- sabe, eu sempre achei que não tinha amigos
- a-ha!
- sempre fui mais de ficar por aqui sentado, jogando... e nunca me dei conta que você também esteve sempre aí, do outro lado.
- it's me, Mario!
- e que apesar de você estar aí e eu aqui, eu sentia que às vezes estávamos realmente juntos, correndo por aí, às vezes até voando
- uh...uh...uh...
- e que eu na verdade sou você e você sempre foi eu mesmo
- ...
- nós, nós dois, somos a mesma pessoa!
- it's me, Mario!

Por um acaso do destino ele nasceu Mario.

E por coincidências da vida, aos 6 anos, jogou Super Mario. E por habilidade nata, ele jamais perdeu uma vida em Super Mario. Por coisa incompreensíveis um dia ele achou ser o próprio Super Mario.

Cresceu guardando esse segredo pra si. Ele e o Super Mario estavam ligados, sabe-se lá por quê. Talvez pelo seu irmão mais novo ter nascido Luigi e pelo seu primeiro amor ser uma loirinha que vivia de vestido rosa. Isso causou algumas complicações ao ele ter adquirido uma estranha excitação ao matar tartarugas pulando em cima delas.

De certa forma isso era bom pra ele. Quando ele olhava pras estrelas, se sentia invencível. Ele sabia que se um dia pudesse alcançá-las seria invencível de fato. Isso tornou-o uma pessoa com extrema autoestima. 

Deu pulos de alegria quando seu bigode começou a nascer. Era um vitorioso.

Foi então que num dia normal ele resolveu jogar o primeiro Super Mario mais uma vez, como já tantas vezes tinha feito. E não se sabe se por acaso do destino, por pura distração ou por coisas que não entendemos. Ele caiu no primeiro abismo do primeiro mundo. Ele morreu.

Seu mundo naquele instante se quebrou. O frio percorreu a espinha toda, eriçando cada pelo da sua nuca. Ele estava esperando pela morte. A qualquer instante. Sabia que eles estavam ligados. Conectados por algo muito maior. Mas ele morreu. E ele continuou vivo. Não estava entendendo muito bem. Tudo que ele acreditou durante a vida era mentira? Não estariam eles ligados? Seria possível?

Mas ele só entendeu tudo quando viu o Mario de volta na tela, como se nada tivesse acontecido. E aí então veio o estalo - Ele nunca tinha se tocado se caso ele morresse de verdade, voltaria, com uma nova chance. Se sentiu melhor do que nunca. Zerou o jogo mais uma vez.




sexta-feira, 18 de março de 2011

quando a música para

Nem sei quanto tempo passou. Parece que foi tanto, ao mesmo tempo em que parece que foi ontem. Acho que a sensação é essa mesmo. Já ouvi muita gente falando assim. Quando comecei com isso tudo imaginei que pudesse ser algo parecido. Mas também admito que me surpreendi muitas vezes. Dum jeito bom e dum jeito ruim também. Me divertia a cada vez que ouvia por aí que eu ia acabar com tudo. Será que eles nunca pensaram que não havia um motivo real pra eu fazer isso? Em todo esse tempo não conheci nenhum criador que ficasse feliz em acabar com sua obra.  Um pintor jamais parou de pintar, um escritor nunca parou de escrever...

Mas a verdade é que música parou de tocar, já faz muito tempo. Está frio. Sentado aqui consigo perceber o último planeta parar de girar. Todos eles já pararam. A estrela que sobrou está tão fraca quanto os pontinhos que víamos no céu a noite. As pessoas já acreditaram fervorosamente em mim e já acharam que eu não existia por muito tempo, voltaram a acreditar e depender de mim novamente e assim seguiu, indo e voltando. Eu jamais deixei de acreditar nas pessoas. A última estrela está quase apagando. O universo está escuro. Foi bom. Foi ótimo na verdade. É a hora de começar tudo outra vez. Estou feliz. Será ótimo. Mais uma vez.




sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

com mil raios e trovões

Seis da tarde. O Sol estava dizendo adeus mais uma vez. Por séculos pensaram que ele era muitos e não só um. Acreditavam que ele descia até se apagar no mar, e no dia seguinte um novo Sol nascia para iluminar as terras. Já acreditaram em muita coisa nesse mundo. Afinal de contas, se ninguém acreditasse que o mundo existe, será que ele existiria?
O sujeito de chinelos de palha estava sentado na areia, longe o suficiente pra não se molhar com a água salgada, mas perto o bastante pra sentir a brisa úmida. O céu estava fechando, as nuvens escurecendo, o cinza se misturava com o roxo e rosa do crepúsculo e fazia um espetáculo belíssimo.

- É, parece que vai chover

Disse, com um tom irônico, o homem de terno preto impecável que parou ao lado do sujeito de chinelos. Enquanto ajeitava seus longos cabelos prateados (desses que só a idade atribui), prosseguiu:

- E parece tempestade. Das bravas.

O leve sorriso veio naturalmente e mutuamente. O sujeito de chinelo se levantou, depositou seu chapéu também de palha cuidadosamente na areia fofa e deu um abraço firme no homem de terno.

- Eu nem acredito... Minha nossa, faz... Quanto tempo? Parecem séculos!
- Hehehe... é amigo, acho que talvez até um pouco mais...
- Bom... por favor, sente-se, quer um pouco de chocolate? Não se faz mais como antigamente mas enfim...
- Ai, ai... (sentando no chão), olha acho que vou aceitar um gole, só pra tirar esse amargo de viagem da boca.

O sujeito entrega a caneca de barro com o chocolate fumegante. O homem de terno engole de uma vez, sem sequer assoprar.

-Ah... bem melhor, está bom sim.
- ...
- ...
- Bom..
- Você acha que vem mais alguém?
- ... e já não está vindo?

Ao longe eles enxergam essa mulher com um casaco de camurça ocre, de pelúcia branca e longa em volta do pescoço, seus olhos negros, puxados e enormes ornavam lindamente com seu longo cabelo azul profundo. Ela caminhava com leveza e escondia um sorriso ao reconhecê-los. Os dois já não escondiam mais nada, levantaram logo a espera de cumprimenta-la. O homem de terno é o primeiro a cortejá-la.

- Kadlu. Você veio mesmo. Uma linda surpresa. (e beija sua mão)


Uma risadinha tímida responde a cortesia.


- É bom te ver também...
- ...
- Tlaloc, querido...

E se dirige ao sujeito de chinelos, o qual a recebe igualmente com um beijo na mão.

- Bom revê-la, querida, bom revê-la...

O sorriso se abre e ela se volta ao homem de terno:
- E seu irmão? Não vem?
- Júpiter? Faz anos que não o vejo. A última notícia que eu tive dele é da recaída da depressão. Ele não conseguiu encarar muito bem as coisas.
- Todos nós passamos por isso. (lembrou Tlaloc) Ele realmente não conseguiu lidar muito bem.
- É...
- ...
- ...Bom, nem todos, na verdade.

A voz pesada veio de trás e surpreendeu. O rapaz loiro de rabo de cavalo estende a mão esquerda para cumprimentar o homem de terno.

- Como vai, velho amigo?
- Ora! O velho Thor! Bom poder recebê-lo com um sorriso no rosto, meu amigo. Bom saber que o “estrelismo” não subiu sua cabeça.
- Acredite, não é a mesma coisa... não quero reclamar, é claro que eu gosto. Mas é completamente diferente... Tlaloc, Kudla, como vão vocês?

A conversa foi interrompida por um clarão e um estrondo. Um trovão. Um relâmpago. Eles se entre olharam, estavam acostumados a isso. E se perguntaram o que estava acontecendo, se havia sido algum deles. A reposta veio logo, em meio a areia levantada pelo lampejo, podia se ver uma silhueta.

- (tosse) Cheguei a tempo? (perguntou a figura ainda misteriosa)
- ...Tupã?
- (tosse)(tosse) E quem mais seria?(tosse) Zeus já chegou. Ninguém mais faria uma entrada extravagante dessas. (tosse)

E estavam lá reunidos, enfim, os Deuses do Trovão, ao menos alguns deles. Olhando de longe pareciam seres humanos normais. Mas se ficasse mais de perto dava pra sentir a estática estalando no ar, parecia que a cada palavra que saia da boca de qualquer um deles o vento se mexia de um jeito único. As nuvens pareciam escurecer e clarear a cada pequena risada gargalhada pelo grupo.

- Bom, muito bem Tlaloc (disse Zeus), o que faremos aqui, eu adoraria pod...
- Um segundo Zeus, querido! O que seria aquilo ali?

Kadlu se referia as incontáveis esferas gigantescas que estavam sendo puxadas com a maré, dum tom alaranjado escuro, boiando em direção a areia.

- É por isso que estamos aqui, Kadlu.
- ...
- Há muito tempo atrás, os meus povos acreditavam que o Sol se punha e se apagava no mar. Acreditavam também que, se no dia que os Sóis postos voltassem com a maré, esse era o dia em que o mundo teria seu fim.
- Isso quer dizer que a Ragnarok... Não é possível, poi...
- É isso que viemos fazer Thor.
Tupã riu e um relâmpago estourou a primeira esfera.
- Acho que entendi, Tlaloc...
- Não é a primeira vez que isso acontece, mas eu sempre dei conta disso. Os sóis não devem chegar aqui. Não foi coincidência marcarmos essa reunião nesse dia. Gostaria que me ajudassem dessa vez.
- Mas Tlaloc, somos os deuses do Trovão, não já muita adrenalina em estourar pedras...
- Você precisa sempre fazer uma tempestade, Thor? Esses gibis te mudaram um bocado... Sempre há tempo de apreciar uma suave brisa.

E os deuses desfizeram os sóis. O que os outros não sabiam, é que de cada fragmento ali separado era feito uma dessas que chamamos de estrela do mar.

- Crenças nunca morrem, amigos. Vocês já deviam saber disso. Se um dia acreditaram que as estrelas repousavam no mar. Eles hão de estar certos.

E o dia amanheceu numa fina garoa de inverno.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

quando o mundo voltou a rodar em preto e branco

Dia 31 de Dezembro de 2010



Uma praia qualquer, 23h46

A excitação do momento ultrapassava qualquer barreira para o pequeno. A queima de fogos era a “coisa mais bonita que ele tinha visto”, na virada do ano passado. E ele estava ansioso por essa, que prometeram ser ainda maior. “Década nova” lhe disseram, sem que ele sequer tivesse completado uma dessas de vida.


Carro, no meio do engarrafamento na estrada, 23h47

A menina já tinha ficado muito irritada. Passar a virada do ano parada na estrada não era o plano que ela tinha na cabeça. Nem do seu pai, nem de sua mãe, muito menos de sua vó, que estavam igualmente estacionados contra a vontade.
Os guardas rodoviários acenavam com lanternas verdes e vermelhas qual lado deveria seguir e qual deveria parar.


Rave, 23h51

A festa estava só no começo. A batida reverberada fazia tremer todas as caixas toráxicas num raio de um quilometro. A sensação desagradava, a primeira vista, mas ”com algumas balas” a promessa era de que melhorasse bastante. O jovem nunca tinha provado e achou que seria um bom jeito de começar o ano.


Quitinete, 23h53

O homem passa os canais chuviscados da sua televisão preto e branco até encontrar algo que sintonizasse. O show da virada não era sua melhor opção, mas sim a única que ele tinha. Encheu seu copo de conhaque, olhou para o relógio de pulso, e separou o celular com cuidado. Sentou na poltrona, esperando.

  
Praia, 23h53

O garoto olha pro céu, hipnotizado. Não queria perder nenhum instantezinho, por isso “já ia ficar olhando bem antes”. “Pai, falta muito?” Puxando a calça com a mão. “Quase filho, faltam 6 minutos, mas fica de olho bem aberto que eles costumam soltar uns ant... olha lá!”
O menino não se cabia em emoção, soltaram alguns poucos fogos de artíficio, mas todos aqueles laranjas, rosas e verdes encheram seus olhos e seu sorriso que ele já sabia - não podia piscar nenhuma vez até que toda aquela magia se fizesse no céu.
“Quer um guaranazinho” e ele nem ouvia. Atento.


Congestionamento, 23h54

_ “Vamos pra praia, vai dar tempo, patati, patatá, argh! Que ideia ridícula! “
_ A ideia foi sua, Joana.
_ ...
_ e têm mais, acho melhor sossegar o pito e aproveitar o momento, não quero virar o ano dando bronca por meninice
_ ...
_Isso mesmo, vou pegar a champanhe no porta-malas, deve estar quente, mas... melhor do que nada
_...
_ Olha Joana, não adianta chorar o leite derramado, já estamos aqui, não temos o que fazer. Esse pessoal aí da frente buzinando sem parar? O que eles ganham com isso? Tão com pressa do quê? Faltam 5 pra meia-noite, agora tanto faz, vamos festejar, mesmo que seja aqui
_...
_ É verdade minha neta, sabe que em tantos anos que já vivi essa é a virada mais diferente que já passei, hehehehe, temos que saber tirar o que tem de bom nela e...


Rave, 23h57

Ele conhecia o ritmo acelerado das raves, mas não imaginava que encontraria doce tão depressa. Comprou alguns com os amigos e os separou pra tomar 0h em ponto. Queria que fosse como num ritual. O música batendo no peito e a droga correndo no sangue. A euforia era tanta que ao tentar acompanhar a batida, deixou cair os pequenos pedaços de alegria que ele acabará de pagar. Direto pro chão, procurar as balas coloridas, tinha 3 minutos, e não podia deixar passar.


Quitinete, 23h58

_ É foi melhor ligar um pouco antes, as linhas ficam congestionadas daqui a pouco... Também queria estar aí com vocês... mas ano que vêm a gente tá junto. Foi uma emergência, era o jeito... É eu sei... Te amo também viu, meu bem? Boa virada pra vocês aí, manda um beijo pra suas irmãs. Deixa falar um pouco com o Pedro... ô filhão, papai tá com saudade também! Ó cuida bem da mamãe aí, hein? Tô chegando, amanhã mesmo já vou te dar um abração daqueles, tá bem? Hehehehe, tá legal! Pode deixar! Um beijão meu filho, papai te ama, viu? Feliz ano novo! Até ano que vêm, hehehehe. Tchau!

Desligou o celular e observou o relógio. Faltando 1 minuto para a meia-noite, colocou mais gelo no  copo. E sentou-se novamente em frente a televisão.


Rave, 0h

A busca foi desesperada, em meio a tantos pés, grama e terra, achou os pequenos comprimidos a tempo. Em quanto a batida eletrônica se misturava ao som dos rojões que vinham da cidade, fechou os olhos e jogou a bala pela garganta. Dançou os rojões e pulou no contra-tempo. Não sabia se já era o efeito da droga ou se era só a agitação de ter conseguido completar seu ritual inventado de entrada de década. Só não teve dúvidas depois que abriu os olhos e viu o cabelo da sua amiga Green, que agora estava branco. A bala era mais doce do que ele imaginava.


Congestionamento, 0h

_Feliz Ano Novo, filhota!
O abraço em família foi melhor do que Joana esperava. Ela até começou a gostar daquela virada inesperada. Só não ia admitir isso pra ninguém tão cedo. Mas dava pra ver no seu sorriso discreto. O momento só foi atrapalhado pelo aumento ainda mais inesperado do buzinaço e o barulho de rojão que não era rojão. Houve uma batida e um engavetamento no trecho impedido da estrada. As luzes vermelhas e verdes se tornaram brancas. Ninguém estava entendendo nada. Nem o pai, nem a mãe, nem a vó, nem Joana.


Praia, 0h

O menino não piscou o olho em momento algum. E a meia noite em ponto soltaram-se todos os fogos de artificio que ele tanto esperou. A alegria não cabia dentro dele e só aumentou quando todas aquelas cores foram mudando e ficando brancas e cinzas. Achou aquilo muito mais bonito que da vez anterior. Mas ao olhar pro seu pai, querendo falar o quanto tinha achado lindso os fogos prateados, notou que o pai “que tava vermelho igual um camarão” também tinha ficado cinza e que seu chinelo azul agora era quase preto. Ele imaginou que talvez pudesse ser por ter ficado tanto tempo com os olhos abertos, sem piscar. Mas ele não achou ruim. Ficou feliz, achou muito mais bonito esse mundo em preto e branco.


Quitinete, 0h01

Olhando sem muita atenção o show da virada na TV, não sabia distinguir muito bem o que eram fogos de artifício e o que era chuvisco da transmissão. Tomou mais um gole de conhaque e olhou no relógio: meia noite e dois. Deu uma risada por ter perdido o momento, pensou na esposa, no filho e falou pra si: “...e um feliz ano novo” brindando com o vento do ventilador de teto.