quinta-feira, 28 de março de 2013

dos dias insípidos


Cinthia fazia 43 anos no dia 29 de outubro de 2009. Ela nem viu o tempo passar. Naquele dia quando olhou no espelho de manhã e se percebeu um pouco mais velha. Olhou para trás, pelo reflexo do espelho e não viu ninguém. Sua memória quis ver seu ex-marido deitado na cama, no lugar da pilha de papéis espalhados que ali repousavam, esperando um novo dia de trabalho. Na verdade eles não apenas pernoitaram ali.

Aqueles papéis estavam lá há um ano.

Foi no dia de seu aniversário de 42 anos. Ela acordou e viu seu marido com um presente numa mão e uma mala na outra. Assustada, ela perguntou o que estava acontecendo. O marido, com o sorriso tímido e o olhar triste, disse com toda a calma do mundo que o trabalho já tinha tomado todo o tempo dela com ele, e agora estava tomando até o seu lugar na cama.

Já era o bastante para ele. Não conseguiria aguentar mais.

Deixou-lhe o presente, um beijo na testa e só então partiu. No cartão havia uma piada sobre os 42 anos e o sentido da vida e tudo o mais. Ela ainda sorriu antes de cair em um tímido choro.

Naquele instante, um ano depois, a porta abriu sozinha.

Cinthia sorriu, virando-se para trás com a certeza de que ele tinha voltado. Ela nunca trocou a chave da porta na esperança dele aparecer um dia.

Mas era só o vento. E Cinthia sentiu.

Sentiu o vento e o coração.
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Celso relembrava o dia com pura melancolia. Ele quase conseguia sentir na boca o gosto sem gosto que todas as coisas adquiriram por meses depois daquele dia. Hoje fazia um ano.

Depois de algum tempo, a uva voltou a ser adocicada, mas o amargo da semente parecia sempre mais forte. O limão nunca deixou de ser azedo, mas Celso simplesmente parecia não se importar. Nem com o doce do chocolate ou com o salgado do feijão com arroz.

Hoje ele tinha decidido fazer uma boa refeição. Por mais que o gosto da sua própria saliva ainda parecesse forte demais em alguns momentos para poder sentir fome o bastante para isso.

No seu caminho para o restaurante, se pegava olhando para os lados mais improváveis ou parando para observar um sorriso feminino na calçada oposta. Só para perceber que não era ela. Por alguns instantes ele sempre achava que era.

Hoje fazia um ano que Celso procurava por ela, mesmo em lugares que ele sabia que ela nunca estaria.

O vento parecia mais frio e mais forte naquele dia. E com o ar veio o cheiro do perfume que ele nunca esqueceu.

Suas memórias ficaram ainda mais claras naquele momento. Os odores reavivam muitos sentimentos.

Lembrou-se de todas as madrugadas em claro esperando por ela, preocupado. E de quando fingiu deixar de se preocupar para ver se ela notava.

 Lembrou-se de quando ela sorria ao vê-lo esperando com um copo de chá quente. Lembrou-se dos recados deixados na geladeira. E dos dias que só via os recados da geladeira. Lembrou-se dos aniversários todos. E do último.  

O cheiro reavivou o nó na garganta. 

Por um momento pensou que pudesse ser ela. Ele não havia escolhido aquele restaurante por um acaso. Eles tinham uma história lá. Então procurou. Olhou para todos os lados e percebeu que ela não estava lá. Ela nunca estaria.

Era só o vento.

E ele sentiu.

O vento e o coração.

sábado, 23 de março de 2013

oito graus em cada olho


Com dois olhos quebrados, o garoto não enxergava bem o mundo. Juntou 2 pedaços de vidro em cima do nariz e só assim as coisas ficaram mais nítidas.

Toda aquela miopia não estava aí à toa. Morria de medo do futuro.

E por isso, vivia fervorosamente o passado.

Sofria de nostalgia aos 12 anos, quando se lembrava do primeiro grau e filosofava sobre como aqueles tempos eram mais bem simples. De fato eram mesmo.

Aos 15 recordava-se de como era bom não ter que estudar química física ou se preocupar com vestibular aos 14 anos. “Preferia quando era só Ciências”, reclamava pra si.

Quando se formou no colegial e torcia por um dispensa no serviço militar, falava pra quem quisesse ouvir que a angustia de ter ou não passado do vestibular era muito melhor que aquilo tudo.

Já na faculdade, cursava História, por motivos que nem ele sabia explicar muito bem.

Naquela tarde de inverno, a prova estava marcada para as 14 horas. Ele seguia explicando para o seu amigo o como a prova de ontem tinha sido muito mais prazerosa de fazer do que a de hoje provavelmente seria.

Em meio à conversa, distraído, tropeçou e caiu. Com ele, seus óculos, e o mundo em sua volta ficou ainda mais nebuloso.

Naqueles instantes em que não podia enxergar claramente, muita coisa se passou na sua cabeça. “E se eu perder esses óculos? E se alguém pisar? Como vou fazer a prova? Como vou embora dirigindo? O que vou fazer com o carro se alguém me levar? Por que nunca quis pôr lentes de contato? Por que isso não aconteceu ontem quando eu estava de carona? “

Então ele ouviu uma voz: “Ei, são seus, né?”

Um borrão cor de pele e amarelo devolveu o par de lentes para ele.

Ele muito agradecido, não parava de dizer obrigado, se desculpando por ser tão desastrado e justificando que ano passado isso não teria acontecido pois ele usava cordinha nos óculos e assim era mais seguro. 

E então ele a viu.

Com as lentes ainda um pouco sujas enxergou um sorriso que ainda não conhecia. E sabia que daquele momento em diante, não tinha mais o que temer do futuro.

“Quer saber? Acho que vou trocar logo por lentes de contato... Obrigado mais uma vez, você é a...”


E nunca deixou de gostar do passado. Mas já não sofria.

Não mais.

quinta-feira, 21 de março de 2013

a mesma praça

Ele corre pela calçada sem pensar em si. Não dá conta de seus passos para pensar em seus atos. O fone de ouvido está desligado. Não que ele tenha percebido. A música já não toca mais dentro dele.

Imerso nos seus pensamentos a ponto de sequer notar que havia acabado de cruzar com o algoz de sua solidão.

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Do outro lado da rua, ela anda cabisbaixa, ouvindo trechos nunca concluídos de conversas capturadas na multidão.

- olha, você viu que o Jorginho fez ontem no churrasco?

- vi, menina! Que menino doido, né?

Não sabia quem era Jorge, mas já concluiu que ele era só mais um incompreendido tentando alegrar uma festa que nem devia estar tão legal assim.

Seguia seus passos com cuidado, fazia todo o esforço do mundo para não voltar para trás.  Mesmo com o vento frio quase cortando seu rosto.

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Sentada na praça central. Ela troca seu olhar entre o livro e as pessoas caminhando. Pensa se em algum momento da vida as pessoas caminhariam todas para uma mesma direção. Lê mais um pouco do livro sem prestar atenção e conclui: 

- as pessoas já não fazem isso?

Levanta, se espreguiça, respira fundo e decide ir pegar um livro mais interessante na biblioteca. 

No caminho imagina se não devia comprar um e-book ou algo do tipo. Caminha mais um pouco e decide que poderia conviver bem com as duas coisas.

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Largado no chão, ele pensa se vai conseguir comer algo hoje.

Procura algum dinheiro no bolso e encontra poucas moedas. Parece o suficiente para um pastel ou um lanche.

Mas o fermento do pão não vai fazê-lo esquecer de que pode não ter dinheiro para amanhã.

Caminha cambaleando até o bar, pede quatro doses e pensa em não se lembrar. 

Reza para não se lembrar.

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Parado dentro do carro, desvia o olho do menino que joga as bolinhas no semáforo. Nega um trocado pelo pequeno espetáculo, mas o observa de canto, condolente. 

Pensa que poderia ser seu filho ali, mas pensa também que nunca deixaria um filho seu passar por isso. Não importa a situação.

- Talvez ele não tenha pais – pensa.

E acelera até o próximo semáforo.

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No parapeito do terraço do prédio, ele não demonstra qualquer emoção. Com a mão suja de tinta de caneta azul – borrada da carta que acabara de escrever – observa o movimento das ruas.

Vê as pessoas seguindo para todos os lados. Os carro, apressados. Todos no seu caminho, na sua linha. Mesmo que seja torta como o do bêbado. 

Por não encontrar o seu, e nem a sua, decidiu se jogar da vida. 

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Brincando no balanço, ela pensa em montar o maior castelo de areia do parque. Imagina em rodeá-lo com um fosso para depois preenchê-lo com água do bebedouro. Seria o fosso dos jacarés que impediriam qualquer malfeitor de entrar no castelo que moraria sua família real, e a real também.

Ao pular do balanço, ela torce o pé e então vem as lágrimas.

No meio do choro percebe que não há jacaré que não possa não deixar o machucado entrar em seu castelo.
Logo pensa em fazer uma ponte.

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Ao perceber o sol se pondo ele para. Ele para e observa.

Pensa que não parava já há algum tempo. Olha em volta e vê que ninguém mais parou. Pensa se está fazendo a coisa certa.

Olha mais uma vez para o pôr-do-sol, sente o vento fresco de cheiro suave e percebe as nuvens coloridas no céu ainda mais colorido.

E então tem a certeza de que está.

segunda-feira, 18 de março de 2013

já eu, prefiro os dias chuvosos


Ele mais do que já ouvira falar de todo o mal que vinha dos raios ultra violeta. Mas não era por isso que gostava dos dias nublados. Pois sabia bem que as nuvens, por mais escuras que estejam, não barram esse mal do mundo moderno. E tampouco desgostava do Sol. Sentia-se bem ao se aquecer debaixo dele no frio e amava admirar sua chegada e sua partida diária. 

Contudo, seu coração não o deixava enganar-se: era sim, além de corintiano, um autêntico preferidor dos dias mais cinzas. O sorriso vinha fácil quando, pela manhã, não via o azul do céu. Quando enxergava aquela imensidão branca ou cinza. Também não tinha nada contra o azul e o amarelo da luz. Gostava sim, é verdade! Mas quando o vento da chuva entrava no quarto era difícil manter os olhos abertos e não soltar um longo suspiro. Sentia-se especial naqueles momentos. E não sabia dizer exatamente o por quê. 

A chuva também o deixava confortavelmente nostálgico. Certa vez, chegou a pensar que cada gota da chuva era uma memória esquecida, e que elas caiam do céu só pra gente se lembrar. 

Vez ou outra fazia questão de tomar umas gotas na cabeça pra tentar provar sua teoria. E ela, até então, se provava muito verdadeira, dizia.
Era na chuva que ele dizia ver a vida do planeta pulsar. Parecia até que as plantas ficavam mais felizes. 

Curiosamente, tinha igual fascinação por desertos. E ele também nunca entendeu muito bem o motivo. 

Sempre admirou a beleza da imensidão de areia. O sentimento de solidão e pequeneza que eles passam.

E pensou que um dia gostaria de visitar um deserto num dia chuvoso. Mas não uma tempestade. Só uma garoa fina. Um céu nublado. Cinza. Deixando o amarelo da areia ainda mais vivo. 

Queria visitar, nem que fosse em sonho.

Mas sabia que se chovesse no deserto, talvez o deserto não fosse deserto.

Então preferiu que fosse em sonho. 

E então sonhou.

Com uma imensidão branca e fria. De areia e chuva. De espaço infinito. Onde podia correr sem se cansar e até mesmo voar sem perceber. Pensou que no sonho aquilo fazia muito sentido e que se ele não corresse sem se cansar ele difícil acharia que aquilo não era verdade. Num suspiro de alegria sentiu o corpo mexer e desadormeceu. 

Naquele dia acordou sorrindo e querendo conhecer o polo sul.
E, felizmente, estava chovendo.